25.8.06

Kierkegaard

Kierkegaard engajou-se nesse exercício extremamente difícil e incrivelmente sutil por uma razão, e só por uma: ser capaz, finalmente, de concluir com autoridade como uma pessoa seria se não mentisse. Kierkegaard quis mostrar as múltiplas maneiras pelas quais a vida entrava e malogra quando o homem se recusa a ver a realidade de sua condição. Ou, na melhor hipótese, que criatura indecorosa e patética o homem pode ser quando imagina que, vivendo só para si, está concretizando sua natureza.
Kierkegaard não tinha uma explicação simples sobre o que a saúde é. Mas sabia o que ela não era: não era o ajustamento normal – tudo menos isso, conforme teve tamanho trabalho analítico para nos evidenciar. Ser um homem cultural normal é, para Kierkegaard, estar doente – quer se saiba disso ou não: “há uma coisa como saúde fictícia”. Nietzsche posteriormente teve a mesma idéia: “Haverá talvez – uma pergunta para os psiquiatras – neuroses de saúde?” Mas Kierkegaard não só formulou a pergunta como também a respondeu. Se saúde não é normalidade cultural, então refere-se a outra coisa, deve indicar algo além da situação comum do homem, de suas idéias habituais. Saúde mental, em suma, não é típica, mas típica-ideal. É algo muito além do homem, algo a ser conseguido, algo pelo que lutar, algo que conduz o homem para além de si mesmo. A pessoa sadia, o indivíduo verdadeiro, a alma que percebeu a si mesma, o homem real, é aquele que transcendeu a si próprio.
Como alguém transcende a si mesmo, como se desvenda à nova possibilidade? Dando-se conta da verdade de sua situação, fazendo dissipar-se a mentira de seu caráter, soltando seu espírito da prisão condicionada. O inimigo, para Kierkegaard como para Freud, é o complexo de Édipo. A criança construiu estratégias e técnicas para manter sua auto-estima face ao terror de sua situação. Estas técnicas convertem-se em um armadura que conserva a pessoa presa. As próprias defesas de que ela agora precisa para se movimentar com confiança em si mesma e auto-estima tornaram-se uma armadilha para a vida inteira. A fim de transcender-se ela tem de derrubar o que for preciso para viver. Como Lear, ela tem de lançar fora todos os empréstimos culturais e enfrentar nua a tempestade da vida. Kierkegaard não alimentava ilusões a respeito do anseio do homem pela liberdade. Sabia como as pessoas se sentiam acomodadas na prisão de suas defesas de caráter. Como muitos presos, sentem-se confortáveis em suas rotinas limitadas e protegidas, e a idéia de liberdade condicional no amplo mundo de probabilidades, acidentes e escolha as aterroriza. Só temos de relancear novamente a confissão de Kierkegaard na epígrafe deste capítulo para ver o porquê.
[Toda a ordem das coisas enche-me com um sentimento de angústia, desde o simples mosquito até os mistérios da encarnação; tudo é inteiramente ininteligível, e particularmente minha própria pessoa. Grande e sem limites é minha tristeza. Ninguém a conhece, exceto Deus no Céu, e Ele não pode ter pena. – SÖREN KIERKEGAARD]
Na prisão de seu próprio caráter, pode-se fingir e achar que se é alguém, que o mundo é controlável, que há uma razão para a vida, uma justificativa pronta para a ação de cada um de nós. Viver automática e displicentemente é estar garantido pelo menos de um quinhão mínimo das grandiloqüências culturais programadas – daquilo a que poderíamos denominar heroísmo da prisão: a presunção dos que estão por dentro e que sabem.
O tormento de Kierkegaard foi resultado direto de ver o mundo como realmente é com relação à sua situação como criatura. A prisão do seu próprio caráter é esmeradamente construída de sorte a negar uma única coisa apenas: a condição animal de cada um. Isto é o terror. Uma vez que alguém admite ser uma criatura que defeca, está-se convidando o oceano primevo de angústia animal para nos inundar. Mas, é mais do que angústia animal: é igualmente angústia do homem, aquela que decorre do paradoxo humano de ser o homem um animal consciente de sua limitação animal. A angústia é resultante da percepção da verdade quanto à própria situação de cada um. O que quer dizer um animal auto-consciente? A idéia é ridícula, senão monstruosa. Quer dizer saber-se que o homem é comida para os vermes. Este é o terror: ter emergido do nada, ter um nome, consciência do próprio eu, sentimentos íntimos profundos, um cruciante anelo interior pela vida e pela auto-expressão e, apesar de tudo isso, morrer. Parece uma burla, motivo pelo qual um tipo de homem cultural se rebela ostensivamente contra a idéia de Deus. Que espécie de divindade criaria tão complexa e extravagante comida para vermes? Divindades cínicas, diziam os gregos, que usam os tormentos do homem para seu divertimento próprio.
Agora, porém, Kierkegaard parece ter-nos conduzido a um impasse, uma situação impossível. Ele nos falou que, ao percebermos a verdade acerca de nossa situação, somos capazes de transcender a nós mesmos. E, por outro lado, diz-nos que a verdade de nossa condição é nossa, completa e abjeta animalidade, que parece nos empurrar mais para baixo ainda na escala da auto-realização, mais longe da possibilidade de autotranscendência. Esta é, todavia, uma contradição meramente aparente. A torrente de angústia não é o fim para o homem. Ela é, pelo contrário, uma escola que dota o homem com a educação definitiva, a maturidade final. É uma mestra melhor do que a realidade, diz Kierkegaard, porque esta pode ser enganada, distorcida e refreada pelos truques da percepção e da repressão culturais. Mas não se pode mentir para a angústia. Uma vez que a enfrentemos, ela revela a verdade de nossa situação, e só vendo tal verdade pode-se abrir para nós uma nova possibilidade.
Quem é educado pelo pavor [angústia] é educado pela possibilidade... Quando uma tal pessoa, por conseguinte, sai da escola da possibilidade, e conhece mais perfeitamente do que uma criança o alfabeto, de modo a não exigir da vida absolutamente nada, e sabe que o terror, perdição, aniquilamento moram ao lado de todo homem, e aprendeu a lição útil de que todo pavor que alarma pode, no instante seguinte, tornar-se um fato, então interpretará a realidade diversamente...
Nada de enganos quanto a isto: o currículo na escola da angústia é a desaprendizagem da repressão, de tudo o que a criança se ensinou a negar-se de modo a poder se movimentar com um mínimo de serenidade animal. Kierkegaard, assim, coloca-se diretamente na tradição agostiniano-luterana. Educação, para o homem, significa enfrentar sua impotência natural e morte. Como Lutero insistiu conosco: “Eu digo morra, i. e. prove o gosto da morte como se ela estivesse presente.” Só se você provar a morte com os lábios de seu corpo vivo é que poderá emocionalmente saber que você é um animal que morrerá.
O que Kierkegaard está dizendo, em outras palavras, é que a escola da angústia leva à possibilidade só pelo fato de destruir a mentira vital do caráter. Parece o máximo em autofrustração, a única coisa que não se deveria fazer, pois então não lhe restará verdadeiramente nada. Mas, fique tranqüilo, afirma Kierkegaard, “a direção é bastante normal... o eu deve ser rompido a fim de se converter em eu...” William James resumiu belamente esta tradição luterana, nas seguintes palavras:
Esta é a salvação por meio do autodesespero, o morrer para nascer verdadeiramente da teologia luterana, a passagem ao nada de que Jacob Behmen escreve. Para aí chegar, geralmente cumpre passar por um ponto crítico, uma esquina a virar dentro de si próprio. Algo tem de ceder, uma dureza inata tem de quebrar e liquefazer-se...
Uma vez mais esta é a destruição da armadura emocional do caráter de Lear, dos zen-budistas, da moderna psicoterapia, e, de fato, dos homens que se compreenderam em qualquer época. Aquele grande espírito, Ortega, deu-nos uma expressão particularmente pujante disso. Suas afirmações são quase exatamente as de Kierkegaard:
O homem de mente desimpedida é aquele que se livra daquelas idéias
fantásticas [a mentira caracterológica acerca da realidade] e fita a vida no rosto, percebe que tudo nela é problemático e sente-se perdido. E esta é a singela verdade – viver é sentir-se perdido – aquele que aceita isso já começou a encontrar-se, a colocar-se em terreno firme. Instintivamente, como fazem os náufragos, olhará em torno à busca de algo a que se agarrar, e esse olhar trágico, implacável, absolutamente sincero, pois se trata de sua salvação, o fará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas idéias genuínas, as dos náufragos. Tudo o mais é retórica, pose, farsa. Quem não se sente realmente perdido não tem escapatória; quer dizer, nunca se encontrará, nunca se defrontará com sua própria realidade.
E assim se chega à nova possibilidade, à nova realidade, pela destruição do eu ao se fazer face à angústia do terror da existência. O self tem de ser destruído, reduzido a nada, a fim de ter início a transcendência de si próprio. Então, o self pode começar a relacionar-se com poderes além de si mesmo. Ele tem de debater-se em sua finitude, tem de morrer para interrogar essa finitude e poder ver para além dela. Para onde? Responde Kierkegaard: para a infinitude, para a transcendência absoluta, para o Poder Final da Criação que fez as criaturas finitas. Nossa moderna interpretação da psicodinâmica confirma ser esta progressão bastante lógica: se você admite ser um animal, conseguiu uma coisa fundamental: demoliu todos os seus elos ou apoios de força inconscientes. Cada criança firma-se em algum poder que a transcende. Geralmente é uma combinação de seus pais, seu grupo social e os símbolos de sua sociedade e nação. Esta é a trama irracional de apoio que lhe permite acreditar em si própria, enquanto funciona na segurança automática de poderes delegados. Ela, está claro, não admite para si mesma que vive com forças tomadas de empréstimo, pois isto a levaria a duvidar de sua própria ação segura, daquela mesma confiança de que necessita. Ela negou sua animalidade exatamente por imaginar que dispõe de poder seguro, e este poder seguro foi obtido apoiando-se inconscientemente nas pessoas e coisas de sua sociedade. Uma vez que você revele essa fraqueza e vacuidade básicas da pessoa, sua incapacidade, então você é obrigado a reexaminar todo o problema das ligações de poder. Você tem de pensar em refazê-las em uma fonte real de poder criativo e gerador. É nesta altura que uma pessoa pode começar a posicionar sua condição de criatura diante de um Criador que é a Causa Primeira de todas as coisas criadas, não meramente os criadores de segunda mão, intermediários, da sociedade, os pais e a panóplia de heróis culturais. Estes são os pais sociais e culturais que, por sua vez, foram causados, que por sua vez, estão enleados em uma teia de poderes de outrem.
Uma vez que a pessoa se ponha a examinar seu relacionamento com o Poder Definitivo, com a infinitude, e a reformular seus vínculos desligando-os dos que a rodeiam para ligá-los a esse Poder Definitivo, ela se franqueia o horizonte da possibilidade ilimitada, da verdadeira liberdade. Esta é a mensagem de Kierkegaard, a culminação de todo o seu raciocínio a respeito dos becos sem saída do caráter, o ideal de saúde, a escola da angústia, a natureza da verdadeira possibilidade e liberdade. Passa-se por tudo isso para chegar-se à fé de que a própria condição de criatura tem certo significado para um Criador; que a despeito da verdadeira insignificância, fraqueza, morte de cada um, sua existência tem um certo sentido definitivo porque existe dentro de um projeto eterno e infinito das coisas produzidas e mantidas dentro de determinado modelo por uma força criadora. Repetidamente, em seus trabalhos, Kierkegaard volta à fórmula básica da fé: a gente é uma criatura que nada pode fazer, mas existe diante de um Deus vivo para quem tudo é possível.
Toda sua argumentação agora torna-se clara como água, segundo a qual a chave da abóbada da fé coroa a estrutura. Podemos entender por que a angústia “é a possibilidade de liberdade”, porque a angústia derruba “todas as metas finitas”, e assim “o homem que é educado pela possibilidade é educado de acordo com sua infinitude.” A possibilidade a nada conduz se não conduzir à fé. Ela é uma etapa intermediária entre o condicionamento cultural, a mentira do caráter e a abertura da infinitude com a qual a pessoa pode relacionar-se por meio da fé. Mas sem o salto para a fé o novo sentimento de desamparo por ter abandonado a armadura do próprio caráter infunde puro terror. Isso significa que se vive desprotegido pela couraça, exposto à sua solidão e desamparo, a angústia constante. Nas palavras de Kierkegaard:
Agora o pavor da possibilidade conserva-o como sua presa, até poder entregá-lo a salvo nas mãos da fé. Em nenhum outro lugar encontrará ele repouso... ele, que atravessou o currículo do infortúnio oferecido pela possibilidade, perde tudo, absolutamente tudo, de forma que ninguém o perdeu na realidade. Se nesta situação ele não se comporta falsamente face à possibilidade, se não tenta falar desviando-se do pavor que o salvaria, então receberá tudo de volta novamente, como na realidade ninguém jamais conseguiu mesmo que tenha recebido dez vezes mais, pois o aluno da possibilidade recebeu a infinitude...
Se colocarmos toda esta progressão em função de nosso exame das possibilidades de heroísmo, o resultado será o seguinte: o homem irrompe através dos limites do heroísmo meramente cultural; destrói a mentira do caráter que o fazia portar-se como herói no plano social quotidiano das coisas; e, ao fazê-lo, ele se abre para o infinito, para a possibilidade de heroísmo cósmico, para o próprio serviço de Deus. Sua vida, portanto, adquire valor definitivo em vez de valor simplesmente social e cultural, histórico. Ele liga seu eu interior secreto, seu talento autêntico, seus mais profundos sentimentos de originalidade, seu anelo íntimo por um significado absoluto ao próprio substrato da criação. Nas ruínas do eu cultural demolido permanece o mistério do eu particular, invisível, interior, que anelava por significado definitivo, por heroísmo cósmico. Este mistério invisível no coração de toda criatura agora alcança significado cósmico ao afirmar sua conexão com o mistério invisível do âmago da criação. Este é o significado da fé. Ao mesmo tempo, é o significado da fusão da Psicologia e da Religião no pensamento de Kierkegaard. A pessoa verdadeiramente aberta, aquela que se desfez de sua couraça de caráter, da mentira vital do seu condicionamento cultural, está além do auxílio de qualquer mera ciência, de qualquer padrão meramente social de saúde. Ela está absolutamente só e tremendo à beira do esquecimento que é, ao mesmo tempo, o umbral da infinitude. Dar-lhe o novo apoio de que carece, a “coragem para renunciar ao pavor sem qualquer pavor... disso só a fé é capaz”, afirma Kierkegaard. Não que esta seja uma saída fácil para o homem, ou uma panacéia universal para a condição humana – Kierkegaard nunca é fácil. Ele fornece uma idéia extraordinariamente bela:
não que [a fé] aniquile o pavor, mas permanecendo sempre jovem, ela está continuamente se formando da convulsão mortal do pavor.
Por outras palavras, desde que o homem é um animal ambíguo nunca poderá abolir a angústia; o que pode fazer, em vez disso, é usar a angústia como eterna mola para crescer em novas dimensões de pensamento e confiança. A fé apresenta uma nova missão para a vida, a aventura da abertura para uma realidade multidimensional.
Podemos entender por que Kierkegaard só tinha de concluir seu grande estudo da angústia com as seguintes palavras que possuem o peso de um argumento evidente:
O verdadeiro autodidata [isto é, aquele que por si só transpõe a escola da angústia até a fé] é, exatamente no mesmo grau, um teodidata... Tão logo a psicologia tenha acabado com o pavor, nada mais tem a fazer senão entregá-lo à dogmática.Em Kierkegaard, psicologia e religião, filosofia e ciência, poesia e verdade fundem-se indistintamente reunidas nas aspirações da criatura
trecho de:
A Negação da Morte - de Ernest Becker (Cap.5 - O Psicanalista Kierkegaard - O Significado de Ser Homem - pág.109)